Às vezes o “uhum” resolve

André Lobão
2 min readMay 2, 2024

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Imagino que quem trabalha sozinho e dirigindo tenha a necessidade emocional de ser ouvido a partir do que pensa. Já percebi isso há algum tempo, apesar de não ser psicólogo. O trabalhador de aplicativo de transporte em muitos casos tem também essa necessidade emocional a ser atendida.

Faço esse preâmbulo para descrever uma passagem que tive com um desses trabalhadores que não se consideram trabalhadores, e o Roberto é um desses caras. Ao pegar minha corrida chegou em dois minutos às 5h20 da manhã para me levar ao meu trabalho. Abro a porta e dou bom dia, sendo prontamente respondido. Ele bem me olha, de cabeça baixa e olhando para o seu telefone celular me pergunta o destino da corrida indicado na plataforma: ‘Ilha do Governador?”. Respondo que sim.

A viagem começa e observo que ele avança cruzamentos com a sinalização em vermelho. Na Avenida Brasil ele tenta iniciar um diálogo comigo, a sensação que tenho é que ele quer falar. “Esse país tem muito feriado, tem feriado até para previsão de chuva. A culpa disso é da mídia, a Globo é a culpada”. Eu respondo como o famoso “uhum”, que minha filha não suporta quando me pergunta alguma coisa.

“Veja o que ela está fazendo com o presidente da Argentina o Milei. O cara tá fazendo um excelente trabalho , cortando tudo para controlar a inflação” , elogiando o sujeito que é responsável pelo aumento da pobreza no país que já afeta 57% da população, com 15% passando fome. Mais uma vez respondo com o “uhum”.

Já percebo que o sujeito é um daqueles bolsonaristas radicais e mais um ultraliberal recém convertido pela narrativa da extrema-direita.

“Outro dia peguei uma passageira nesse mesmo horário. A moça deveria ter uns 22 anos, bonita e forte. Você imagina que ela estava reclamando que estava cansada? Cansado estou eu aqui dirigindo esse carro, mas eu não quero saber de reclamar. Eu quero é trabalhar, só assim saio dessa merda que estou”, disse.

Eu sigo ouvindo e no “uhum”.

“O problema do Brasil é que o governo dá tudo. É muito benefício, isso tá acabando com o país e deixa o povo muito preguiçoso”. Antes de dizer meu já cansativo “uhum”, reflito se ele sabe que o empresariado brasileiro está fazendo uma baita pressão para manutenção da desoneração tributária a partir da contribuição previdenciária devida por suas empresas.

É preciso ter resiliência, penso usando um termo adorado pelos neoliberais.

A viagem chega ao seu final, e fico a refletir como um sujeito explorado e precarizado em seu trabalho pode reproduzir uma narrativa de defesa dos ricos. Roberto me agradece e me dá bom dia. Eu já no automático retribuo com um “uhum”, mas me corrijo e agradeço: “obrigado meu caro, tenha um bom trabalho e bom dia”.

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Written by André Lobão

Apenas um jornalista antineoliberal, anticapitalista e brasileiro, acima de tudo.

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