O armário e o terceiro mundo
No final do de 1984 com minha mãe fui morar em Madureira, precisamente no Morro da Serrinha. Em uma fase muito difícil fomos morar em uma chamada “cabeça de porco” na Rua Balaiada. Um cômodo que tinha cozinha e banheiro, com paredes de estuque.
Chegamos ali graças a ajuda da Tia Ira, uma rezadeira que foi uma verdadeira mãe naquele momento, nos acolhendo de forma espiritual e até material. Só tenho a agradecê-la e a sua família por nos ter ajudado.
Naquele cômodo havia morado Aparecida, uma assistente de Tia Ira. Uma preta que era professora de português com especialização em literatura portuguesa, com formação em comunicação social. Ela também cantava, tinha uma linda voz e integrava o Jongo da Serrinha.
Cida, como eu a chamava, sempre conversava comigo. Eu naquele período, com 14 anos, vivia minha primeira depressão, e ela percebeu isso. Eu fiquei praticamente recluso por um ano naquele quarto, só saía para ir à escola, mas matava aulas e perambulava pelas ruas.
Tia Ira, Aparecida e Priminho (filho de Tia Ira) sempre tentavam me levantar. A relação com minha mãe era difícil e eu me sentia muito triste e revoltado, sendo um “aborrecente” de fato.
Certa vez, Aparecida foi nos visitar e abriu o armário que ainda continha coisas suas. Me olhou e disse: “Aqui tem livros e revistas. Tenta matar o tempo com isso aqui, eu acho que você vai gostar”.
Como não tinha televisão, só tinha um rádio, aquele material passou a ser minha fonte para me tirar daquela ociosidade depressiva.
Foi a partir daquele armário que li Ivanhoé, romance de Walter Scott, “Os 10 dias que Abalaram o Mundo” de John Reed, que narra a Revolução de 1917 na Rússia, entre outros livros, e tive acesso um grande acervo de uma revista chamada “Cadernos do Terceiro Mundo”, acho que ali tinham 20 edições, entre os anos de 1981 e 1983.
Eram reportagens e artigos que mostravam a luta dos movimentos sociais, sindicatos, projetos e governos de esquerda nos chamados países da periferia do mundo.
Eu, em meio a um isolamento voluntário, há 36 anos, tive uma introdução sobre o era a Revolução Cubana, os movimentos de libertação dos países da África portuguesa (Moçambique e Angola), Guerra das Malvinas, Nicarágua, Desemprego, Ditadura Militar, CUT, Direitos Humanos, entre tantos outros temas que trato hoje como jornalista sindical.
Cadernos do Terceiro Mundo era um projeto editorial liderado por Neiva Moreira e Beatriz Bissio. Tudo que li naquele material nunca foi ministrado no meu período escolar e universitário. Em realidade tive uma introdução a estudos de sociologia, ciência política, relações internacionais e jornalismo econômico sindical. E hoje quando se fala de “Sul Global” me lembro do armário da Cida.
Faz alguns anos que descobri que todas as edições da revista foram digitalizadas por um projeto de preservação de acervo digital do Centro Internacional Celso Furtado.
Hoje me dou conta o quanto aquele material do armário da Aparecida me ajudou.
Por isso, sou eternamente grato à Aparecida da Serrinha que nos deixou em setembro de 2017.
E sinto muitas saudades do povo da Serrinha, de onde saí em 1990.